Santo Anselmo contra a Substituição Penal

Jadson Targino
10 min readJun 19, 2020
Sto Anselmo

Surgiram diversas objeções ao artigo que escrevi sobre Agostinho (confira aqui) as quais foram respondidas por mim satisfatoriamente (creio eu) aqui e aqui. Entretanto, creio ser benéfico aos leitores apresentar mais uma evidência que demonstra de uma vez por todas a incompatibilidade da visão do Bispo de Hipona com a perspectiva sobre expiação conhecida como Substituição Penal (doravante SP). Para isso, gostaria de “lançar mão” de uma exposição da visão de Sto Anselmo e correlacioná-la a teoria do bispo de Hipona.

O problema da Justiça Retributiva

Na teologia cristã podemos tratar o atributo da Justiça divina sob dois ângulos: a justiça retributiva e a justiça restaurativa. Essa é uma linguagem comum no meio jurídico e é emprestada pelos teólogos. NT Wright, por exemplo, fala tanto na retributiva quanto na restaurativa: “A justiça de Deus é uma justiça salvadora, curadora, restaurativa” (WRIGHT, N.T. Evil and Justice of God. InterVarsity Press. 2011, p. 64. Tradução minha.). Como não é o objetivo deste artigo ser exaustivo no tocante a essa questão, visualizemos a Justiça pela perspectiva que nos interessa para o tratamento deste assunto: a Retributiva, que pode ser definida (em relação a nós) como o “hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua atribuímos a cada um o que lhe pertence” (Tomás de Aquino, ST, Secunda Secundae Pars, q. 58., art. 1, sol).

Em Deus isso se reflete no fato de que Ele “retribuirá a cada um conforme seus feitos” (Rm 2:6), aos justos salvação e aos injustos condenação. Fazer justiça é dar a eles o que eles merecem, retribuir devidamente suas ações.

Uma simples consulta a diversas sistemáticas produzidas pelos principais acadêmicos defensores desta visão demonstra que em suas exposições da justiça divina, simplesmente não se faz menção da justiça restaurativa; ou, quando o fazem, dedicam muito pouco espaço à mesma. E justamente por enfatizar demasiada — e desnecessariamente — a justiça retributiva, é que se torna impossível, para um defensor da SP, que Deus não venha a punir os pecados porque isso faria Deus injusto, afinal, Ele não estaria concedendo aos pecadores aquilo que eles merecem. Nessa dinâmica, a salvação só é possível aos crentes na medida em que algum mecanismo possibilite a efetuação da punição.

É nesse contexto que Jesus assume o lugar de vítima: Ele sofre a punição que os crentes deveriam sofrer para que os próprios crentes não venham a sofrê-la. Essa é, segundo a SP, a conditio sine qua non para que eles sejam livres do inferno.

Essa é razão pela qual João Calvino — considerado por muitos o sistematizador da SP — escreveu sobre a substituição penal em termos de uma “pena necessária”:

“… era necessário que o homem… desfizesse pela obediência a sua condição de caos e confusão, satisfazendo a justiça de Deus e sofrendo a pena devida a seu pecado. Por isso o Senhor Jesus Cristo se dispôs a vir a este mundo, veio, assumiu a pessoa de Adão e tomou o seu nome. [Para quê?] Para fazer-se obediente ao Pai por ele, para apresentar a nossa humanidade em satisfação da justiça de Deus, para sofrer a pena do pecado na mesma carne em que o pecado tinha sido cometido” (J. Calvino, As Institutas: Edição Especial para estudo e pesquisas— Vol. 2. 1 ed. São Paulo: Cultura Cristã. 2002, p. 76).

Perceba as implicações do termo utilizado por Calvino. Não era uma opção. Era necessário que o homem sofresse a pena devida por seu pecado. Assim Jesus encarnou para sofrer a punição pelas transgressões dos homens. Essa visão é seguida por Hodge, Berkhof, Grudem, Craig, Packer, Stott, Sproul, Piper, etc.

Paul Washer, famoso pregador e um dos mais ávidos defensores da Substituição Penal em nosso tempo, escreveu:

“ Ele morreu carregando as transgressões de seu povo e sofreu a pena divina por seus pecados. Ele foi abandonado por Deus e esmagado sob a ira de Deus em nosso lugar.” (WASHER, Paul. A cruz de Jesus Cristo. Disponível aqui. Acesso em 17/06/2020).

Nesse esquema, portanto, há uma fusão entre satisfação e punição, de modo que a justiça de Deus é satisfeita através da própria punição. Desejo demonstrar o motivo pelo qual creio que esta seja uma mistura equivocada.

Ou Pena ou Satisfação

É sempre necessário que Deus puna? A resposta dos pais é não. Nem mesmo Sto Anselmo, o primeiro teólogo da Igreja a usar explicitamente as categoria de satisfação e pagamento ao Pai, acreditava nisso. O próprio Dr. J.I. Packer, um dos grandes defensores da SP no meio anglicano, reconhece isso:

“Lutero, Calvino, Zwinglio, Melanchthon e seus contemporâneos reformadores foram os pioneiros [na história] em afirmá-la [a doutrina da substituição penal]… O que os reformadores fizeram foi redefinir satisfatio (satisfação), a principal categoria medieval para pensar sobre a cruzO “Cur Deus Homo” de Anselmo… afirmou que a satisfação de Cristo por nossos pecados é uma oferta de compensação ou danos pela desonras, mas os reformadores o viram como a punição vicária (poena) para atender às reivindicações sobre nós da santa lei e ira de Deus” (PACKER, J.I. The Logic of Penal Substitution. Tradução minha. Disponível aqui. Acesso em 10/06/2020).

Os reformadores aproveitaram boa parte da linguagem anselmiana, mas redefiniram completamente a questão. Enquanto para os reformadores a satisfactio (satisfação) pelos nossos pecados se dava através do Filho de Deus sofrer a poena (punição) em nosso lugar, para Anselmo (o originador da terminologia) a satisfação se dava exatamente para que não houvesse punição. Aut poena, aut satisfactio. Ou punição ou satisfação. Jamais as duas juntas. O Filho não é punido pelo Pai, mas oferece uma satisfação para que não sejamos punidos. O dr. Bretzke explica a origem da terminologia:

“A dicotomia anselmiana, usada na teologia da justificação, é aquela que sustenta que a justiça, em especial a Justiça de Deus, requereu pagamento do débito pelo devedor ou algum tipo de ‘satisfação’ pela dívida. Através do seu pecado, o homem adquiriu um débito para com Deus que não seria capaz de pagar, deste modo, Deus aceitou a morte de Jesus como satisfação pelo débito” (BRETZKE, James. Consacrated phrases: a Latin Theological Dictionary. 2 ed. USA: 1998, p. 15. Confira aqui. Acesso em 18/06/2020. Tradução minha.)

O teólogo Hye Kyung expõe a diferença:

“A teoria da expiação da satisfação de Anselmo difere claramente da imagem penal substitutiva em que Deus pune Jesus como um substituto para punir a pecaminosidade da raça humana… A morte de Jesus nessa visão não é sobre Jesus estar suportando uma punição merecida pelo pecado dos seres humanos mas sobre restaurar a ordem e a harmonia do universo. Aqui está o ponto onde a teoria de Santo Anselmo sobre expiação difere da substituição penal de Lutero. Para Anselmo, a satisfação é uma alternativa para não punir o pecado; ou seja, algo que substitui a punição — aut poena, aut satisfactio. Para Lutero, a satisfação inclui a noção de punição substitutiva” (KYUNG, Hye Heo. The liberative cross: Korean-North American Women and the Self-Giving God. USA: Pickwick Publications. 2015, p. 80–81. Confira aqui. Tradução minha.)

E realmente, Lutero fomenta este ensino:

“Cristo… ofereceu a si mesmo no lugar de nossa natureza pecaminosa, o qual assim tomou sobre si toda a ira de Deus merecida por nós sem que ele tivesse nossas obras [pecaminosas]” (Epistle Sermon. New Year’s Day 50. In: LUTERO, Martinho. Luther’s Works: 7:287 [ed. Lenker]. Tradução minha.).

Na teoria de Santo Anselmo a punição não é inevitável. Jesus evita a nossa punição oferecendo uma satisfação. A punição não se dá pela satisfação; há, como já foi dito, uma dicotomia: “É necessário que lhe devolva a honra que lhe foi tirada, ou que siga o castigo” (Sto Anselmo, Cur Deus Homo, Livro I, Cap. XIII).

A Escritura ensina que Deus não precisa punir. Deus não precisa manifestar o seu juízo sempre: “Ele, porém, que é misericordioso, perdoa a iniquidade e não destrói; antes, muitas vezes desvia a sua ira e não dá largas a toda a sua indignação” (Sl 78:38, ARA). Deus pode restaurar ou condenar. Sempre é possível a Deus escolher entre essas duas opções. É mister pontuar que a condenação de alguém não é, na economia da salvação, uma condição para a redenção de outro e que a restauração do pecador também satisfaz a Justiça Divina: “Eu dizia: Certamente me temerás e aceitarás a correção; e assim a sua morada não seria destruída, conforme tudo o que eu havia determinado a respeito dela. Mas eles se levantaram de madrugada, e corromperam todas as suas obras” (Sf 3:7, confira aqui a tradução bíblica utilizada). A nossa correção é uma opção. A obra de Jesus na cruz — a qual, repita-se, não é uma punição substitutiva — é a Causa Efficiens (causa eficiente) que opera a nossa correção, tirando de nós através da purificação aquilo que desperta a ira de Deus. Sendo corrigidos, não precisamos mais ser punidos.

Mais uma vez, o bispo de Cantuária escreve: “Punição OU satisfação [aut poena, aut satisfactio] precisam se seguir a partir de cada pecado”(Santo Anselmo, Cur Deus Homo, Livro I, Cap. XV).

Santo Agostinho e Santo Anselmo

O bispo de Hipona e o bispo de Cantuária viam a expiação de modos diferentes. Santo Anselmo via o pagamento como sendo feito a Deus: “Mas isso (a satisfação) não pode ser feito, a não ser que o preço pago a Deus pelo pecado do homem seja algo maior que todo o universo exterior a Deus” (Sto Anselmo, Cur Deus Homo, livro 2, cap. VI) enquanto Santo Agostinho ensinava que o pagamento havia sido entregue a Satanás: “Nessa redenção, o sangue de Cristo foi dado por nós como preço do resgate, preço que não enriqueceu mais o demônio quando o recebeu, mas ao contrário, com ele ficou atado” (De Trinitate, Livro XIII, Cap. 15, 19). Entretanto, uma coisa tinham em comum: rejeitavam a premissa da inevitabilidade da punição, premissa essa tão cara aos defensores da SP.

Para eles, a punição não era uma necessidade absoluta. Tanto para Anselmo (como demonstrado) como também para Agostinho. Todas as obras que serão mencionadas adiante podem ser facilmente encontradas neste link. Inúmeros trechos como esses podem ser retirados da obra do bispo africano, mas decidi selecionar três, os quais foram traduzidos pelo rev. Gyordano Montenegro:

“Vede então, irmãos, que o pecado não pode estar impune. Se um pecado permanecesse impune, haveria injustiça, então sem dúvida ele deve ser punido. É isto o que Deus te diz: ‘O pecado deve ser punido, seja por ti ou por mim’. Então o pecado é punido, ou pelo homem penitente ou por Deus judicante” (Sermão nº 19).

Similar a visão de Anselmo, Agostinho também propunha que haviam duas opções que seguiam de uma transgressão: ou o pecado era punido através da penitência do homem que o cometeu, ou por Deus (no caso de não haver o arrependimento). Agostinho sequer menciona Jesus nesta “equação” (embora se subtenda a obra de Cristo no sentido de que é ela quem possibilita e move os homens a se arrependerem). A solução proposta por Agostinho não é o Filho ser punido no lugar do pecador mas o pecador, em penitência, punir seu próprio pecado através do arrependimento. Como arrazoa o rev. Gyordano: “A solução agostiniana não é lançar a punição sobre Cristo, mas simplesmente que cada pecador puna a si mesmo. Essa punição é a penitência, auto-infligida, não é um castigo retributivo lançado por Deus. A ira de Deus não precisa ser lançada. Não precisa!”.

Se Anselmo fala de um “aut poena, aut satisfactio” (ou punição ou satisfação), Agostinho fala de um “aut poena, aut contritio” ( ou punição ou arrependimento). Comentando o Salmo 51, o teólogo africano escreve:

“Que todos os que caíram respondam com Davi e digam: Não, Senhor, nenhum pecado meu ficará sem punição; conheço a justiça daquele de quem busco a misericórdia; não ficará sem punição, mas por isso eu não quero que tu me punas, pois eu puno meu pecado; por essa razão eu suplico o teu perdão, pois eu reconheço” (Enarrationes in Psalmos, 51, 8)

Sim, para Agostinho nenhum pecado pode ficar sem punição. Mas essa punição não precisa ser a da Justiça Retributiva de Deus. Para evitar a execução da Justiça Punitiva — “não quero que tu me punas” — Agostinho propõe a contrição: “pois eu puno meu pecado”. Uma solução bem diferente da proposta pelos defensores da SP. Por fim, mais uma citação:

Assim, se queres que ele ignore [teus pecados], reconhece-os tu. O pecado não pode estar impune; o impune não é adequado, não é apropriado, não é justo. Então como o pecado não pode estar impune, que seja punido por ti, para que não seja punido por Ele. Teu pecado tenha em ti um juiz, não um patrono. Sobe no tribunal da tua mente contra ti mesmo e constitui-te réu diante de ti… Assim como está dito no mesmo salmo [51], para que facilmente se lhe impetre o perdão: “Pois a minha iniquidade eu reconheço e o meu pecado está sempre diante de mim”, que é como dizer: “Como está diante de mim, não esteja diante de ti, e o que eu reconheço, ignora tu. Pois o pecado ou é punido por ti, ou por Deus; mas por ti sem que tu sejas punido, por Deus contigo. Sê o punidor de ti mesmo, para que tu tenhas em Deus um defensor” (Sermão nº 20).

Conclusão

Apesar do Bispo de Cantuária enfatizar sua própria visão sobre a expiação na qual a satisfação paga ao Pai assume um papel estritamente central, convém — seguindo a a proposta de apresentar a temática do Christus Victor no decorrer do desenvolvimento teológico da Igreja ao longo das eras — finalizar com uma citação aonde fica nítido que para Anselmo o modo mais conveniente de satisfazer a Justiça divina e assim “devolver a honra a Deus” que foi ofendida pela transgressão humana era por intermédio da derrota do diabo através do próprio homem (cf. Gn 3:15). Isto se cumpre no Homem por excelência, Jesus Cristo, o vitorioso cordeiro que despojou o demônio e suas hostes.

“Pois era conveniente que, assim como a morte do gênero humano teve sua origem na desobediência do homem, assim, também, a vida fosse devolvida mediante a obediência do homem; e assim como o pecado, que foi a causa de nossa condenação, começou pela mulher, assim também, o autor de nossa justificação e salvação nascesse de uma mulher, e que, assim como o demônio havia vencido o homem persuadindo-o a que comesse da árvore proibida, assim, também, este [o demônio] fosse VENCIDO por um homem mediante a morte no madeiro da cruz” (Sto Anselmo, Cur Deus Homo, Livro 1, cap. III).

Revisado por: Lucas M. Barbosa

Por: Jadson Targino

19/06/2020.

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Jadson Targino

Seminarista pelo CETAD/PB (seminário da Assembleia de Deus na Paraíba), tradutor e graduando em Ciências da Religião pela UFPB.