Oração pelos mortos: uma resposta ao pr. Rodrigo Caeté (parte 2)

Jadson Targino
8 min readJan 4, 2021
Cemitério ao lado de uma Igreja

Introdução

No texto anterior, defendi que a questão das orações em prol dos falecidos é uma questão disputável no Cristianismo. O que quero dizer é que essa é uma doutrina jamais questionada nos primeiros dezesseis séculos da Igreja e que contou com defensores extremamente piedosos e ilibados das mais diferentes tradições, tais como Agostinho, Tertuliano, Melanchton, John Wesley e C.S. Lewis. Se fosse algo tão delicado quanto um assunto que poderia afetar a salvação de alguém, teríamos de condenar tais homens pios ao inferno por terem defendido a prática, o que um cristão — em sã consciência — jamais faria! Agora, almejo dar alguns passos além. Desejo: (1) dissipar alguns espantalhos muito frequentes em relação a oração pelos defuntos, (2) responder respeitosamente (no mesmo tom do meu primeiro texto!) a algumas objeções que o Caeté levanta, (3) defender positivamente a possibilidade da oração pelos mortos no Cristianismo.

Dissipando espantalhos

A maioria das pessoas que rejeita a possibilidade da oração pelos mortos (como por exemplo, alguns dos primeiros reformadores fizeram) o fazem com medo de que esta oração crie superstições em relação ao estado daqueles que já partiram na mente dos cristãos. Assim, criticavam essa prática com medo de que ela endossasse a doutrina do purgatório católico-romana. Contudo, não existe qualquer ligação intrinsecamente necessária entre as duas coisas. Como o bispo anglicano dr. NT Wright bem explica,

“[…] tanto os santos que partiram como nós mesmos estamos em Cristo, compartilhamos com eles a ‘comunhão dos santos’. Eles ainda são nossos irmãos e irmãs em Cristo. Quando celebramos a Eucaristia, eles estão conosco, junto com o anjos e arcanjos. Por que então não devemos orar por eles e com eles? A razão pela qual os reformadores e seus sucessores fizeram o possível para proibir a oração pelos mortos foi porque isso estava tão ligado à noção de purgatório e àquela necessidade de retirar pessoas para fora dele o mais rápido possível. Uma vez que descartarmos o purgatório, não vejo razão para não orarmos pelos mortos e temos todas as razões pelas quais deveríamos — não para que saiam do purgatório, mas que sejam revigorados e cheios da alegria e da paz de Deus. O amor se transforma em oração; ainda os amamos; por que não mantê-los, nesse amor, diante de Deus?” [1].

A oração pelos mortos no judaísmo nunca era realizada pensando em algum tipo de Purgatório. Ela era feita, na verdade, focalizando a questão de que o Juízo Final e a Ressurreição ainda não ocorreram. “Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles” (2 Mac 12:44). O fato é que o Pai Onipotente pode sim, “conced[er] que naquele dia” o pecador “ache misericórdia diante do Senhor” (2 Tm 1:18). O ponto é que enquanto o Juízo Final não ocorrer, sempre há esperança.

Outro ponto de extrema necessidade é enfatizar a diferença que existe entre orar pelos mortos e orar para os mortos. Alguns apologistas parecem ter cometido essa confusão quando de forma muito infeliz usam textos bíblicos que condenam a comunicação com falecidos para combater a oração pelos mortos, o que é, de forma desonesta, associar a oração pelos mortos com a necromancia e ao espiritismo, sendo que são bem diferentes. Veja: orar pelos mortos é orar PARA Deus em benefício dos falecidos. Dirigimos a petição para o Senhor. Já orar para os mortos é tornar os mortos interlocutores de um diálogo, o que é expressamente proibido pelas Escrituras. “[Não se achará no meio do teu povo] nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus os lança fora de diante de ti” (Dt 18:11,12).

Às vezes, alguns têm medo de orações pelos mortos porque nunca viram exemplos das mesmas fora do contexto do Purgatório. Mas, simples frases como quando dizemos “que Deus a tenha” em relação a uma pessoa que faleceu, “que Deus tenha misericórdia daquela alma” e “lembra-te, Senhor, dos que partiram na esperança da ressurreição” são pequenas orações em favor dos falecidos. No LOC (Livro de Oração Comum) constam orações em favor dos mortos, por exemplo:

“Ó Deus, cujas misericórdias não podem ser contadas; aceita nossas orações em favor de teu filho N., que partiu, e concede-lhe entrada ao teu reino de luz e alegria, na comunhão de teus santos; mediante Jesus Cristo nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, agora e para sempre” (Ofício de Sepultura).

Como está evidente, não tem nada a ver com preces do tipo “livra aquela pessoa do fogo do purgatório” ou afins.

Respondendo objeções

O pr. Rodrigo Caeté levanta também algumas objeções contra a oração pelos mortos. As responderei ordenadamente.

(A) “A oração não muda o destino dos mortos”. R: Na verdade, tudo já foi decretado por Deus antes da fundação do mundo (cf. Rm 8:28, Ef 1:11, Is 45:6–7, etc.) e o decreto de Deus não pode ser alterado (Hb 6:17, Ml 3:6, Is 14:27). Falando em sentido estrito, a oração não muda o destino de ninguém. Nem dos mortos, nem dos vivos. Rodrigo, como um bom calvinista, já sabe disso. O fato de que a oração não muda os destinos não significa que devemos deixar de orar. Pelo contrário, devemos entender o verdadeiro propósito da oração, a saber, Deus usa nossas orações como meio de executar no tempo aquilo que Ele desejou desde a eternidade. As orações não mudam o decreto (nem o destino), na verdade, o cumprem.

(B) “Se quem defende a oração pelos mortos for coerente diante de sua interpretação de Ef 1:15, 6:17–18, deve assumir que Paulo estava diante de pessoas que expressaram amor pelos mortos”. R: Sim! E por que isso seria ruim? Não continuamos amando nossos entes queridos que partiram!? Não amamos também os mártires que sacrificaram suas vidas por amor ao Evangelho…? Infinitos exemplos poderiam ser dados.

(C) “Essa interpretação de 1 Tm 2:1–6 que favorece a oração pelos falecidos está equivocada”. R: Não está equivocada, pelo menos a priori. Cabe ao objetante demonstrar que está. O Silogismo é claríssimo:

P. 1. Paulo manda orar por todos os homens.

P. 2. Os mortos não deixaram de ser homens.

C. Portanto, na ordem de Paulo para orar por todos os homens os mortos também estão incluídos.

Para refutar esse arrazoado, os oponentes devem questionar as premissas. Caso não consigam, por força lógica, a conclusão se segue.

É importante destacar que há sim sentenças absolutas na Bíblia que possuem exceção. Por exemplo: “Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade. Tenho autoridade para dá-la e para retomá-la. Esta ordem recebi de meu Pai” (Jo 10:18). “Ninguém a tira… mas eu a dou”. Ninguém é uma negativa absoluta e universal, mas ainda sim o texto fornece uma exceção, ‘mas eu’. Esse é exatamente o ponto: quando o autor bíblico tem em mente alguma exceção, ele a indica no próprio texto. Quando não há essa indicação, o que podemos fazer no máximo é presumir que o autor fez essa exceção o que é uma mera suposição da nossa parte e não pode ser utilizado como argumento na discussão teológica.

Argumentação positiva em favor da possibilidade de se orar em favor dos falecidos

Eu defendo que orar pelos mortos é uma prática que está no campo da Liberdade Cristã, de modo que podemos fazer ou não fazer. A Bíblia simplesmente não legisla a respeito. Já aqueles que argumentam contra a prática defendem que ela é pecado, ou seja, não deve ser feita.

Temos um problema aí: qual versículo bíblico proíbe a oração pelos mortos? É interessante notar que no Catecismo de Westminster, na p. 183, consta o seguinte:

Por quem devemos orar?
Devemos orar por toda a Igreja de Cristo na terra, pelos magistrados e outras autoridades, por nós mesmos, pelos nossos irmãos e até mesmo pelos nossos inimigos, e pelos homens de todas as classes, pelos vivos e pelos que ainda hão de nascer; porém, não devemos orar pelos mortos, nem por aqueles que se sabe terem cometido o pecado para a morte.

É interessante notar que o Catecismo Maior de Westminster cita versículos para embasar praticamente todos as afirmações “por toda a igreja”, “pelos magistrados”, “pelos nossos inimigos” etc. Mas não cita sequer UM versículo em favor da proposição “não devemos orar pelos mortos”. A resposta é simples: é porque essa proibição simplesmente não existe!

Aqueles que proíbem a oração pelos mortos quando nem Deus a proibiu acrescentam mandamentos à lei de Deus. “Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando” (Dt 4:2). Quando acrescentamos mandamentos à Palavra, ofendemos a Sabedoria divina. É como se disséssemos que Deus esqueceu de proibir algo, ou seja, tornamos a lei de Deus insuficiente.

O ensino geral dos protestantes a respeito da Liberdade Cristã é que não podemos exigir das pessoas a fazer aquilo que a Bíblia não exige. Isso seria constranger inadequadamente a consciência individual de cada cristão. Deus é o único Senhor da consciência humana. Por isso, escreveu o exegeta da reforma João Calvino: “tudo quanto é de invenção humana não obriga a consciência”[2]. Se a proibição a oração pelos falecidos (não existindo, repita-se, tal proibição na Palavra de Deus) é de invenção humana, certamente também não obriga a consciência.

Concluo citando o reformador Filipe Melanchton:

“Da mesma forma os que instituem [para guarda obrigatória] ordenanças humanas também agem contra o mandamento de Deus… Existem… claras passagens da divina Escritura que proíbem estabelecer semelhantes ordenações… como se fossem necessárias” (Confissão de Augusburgo, Cap. 28).

As regras humanas até tem aparência de maior piedade mas para nada servem, em nada nos acrescentam. “As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Cl 2:22–23).

Conclusão

Foi um prazer imenso poder dialogar com o texto do pr. Rodrigo Caeté e fazer a minha própria contribuição ao debate. É importantíssimo que, no que se refere a esse assunto (secundário!), possamos sempre nos manter abertos e humildes; jamais julgando a salvação de nossos desafetos no campo da argumentação muito menos desqualificando seu intelecto porque discordam de nós. Deus abençoe a Igreja.

— — — — — — Referências Bibliográficas — — — — — —

[1] WRIGHT, N.T. Surprised by Hope, HarpersOne, 2008, p. 172. Trad. Minha.

[2] CALVINO, João. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses / Série Comentários Bíblicos — João Calvino; Tradução: Valter Graciano Martins. 1 E ed. São José dos Campos/SP: Fiel. 2013, p. 570.

--

--

Jadson Targino

Seminarista pelo CETAD/PB (seminário da Assembleia de Deus na Paraíba), tradutor e graduando em Ciências da Religião pela UFPB.