Isaías 53 — Uma interpretação alternativa

Jadson Targino
8 min readJul 3, 2020
Jesus holding the cross.

O capítulo 53 do livro de Isaías tem sido frequentemente visto pelos defensores da teoria da Substituição Penal como a pedra no sapato daqueles que sustentam teorias paralelas como as teorias da satisfação, resgate, governamental etc. Existe outra forma plausível de interpretar o texto que não exija os pressupostos da Substituição Penal? Respondemos que sim.

O contexto de Isaías 53

Já dizia o ditado popular: “texto fora de contexto é pretexto para equívoco interpretativo”. Em relação a esse capítulo do grande profeta messiânico não poderia ser diferente: como o rev. Gyordano Montenegro bem pontua, o trecho alvo do nosso estudo é “parte do segundo bloco principal do livro (Dêutero-Isaías, capítulos 40–55)”[1].

Isaías 53, desta feita, está inserido numa discussão que tem como tema a disciplina do povo de Deus como consequência das transgressões à aliança de Deus, em especial, o pecado da idolatria, que vinha sendo tão criticado do capítulo 40 ao 49 do livro em questão. Assim coloca o dr. NT Wright:

“Então, sobre o que, basicamente, é a passagem? É dirigido ao povo de Israel no exílio babilônico sobre o qual Deuteronômio havia alertado anteriormente e o próprio profeta Isaías havia advertido no capítulo 39. Babilônia destruiu Jerusalém, levando a maioria do povo judaico em cativeiro para um exílio do qual eles deveriam ter pensado que nunca voltariam. Os profetas insistiram que esse exílio não era um mero desastre político. Foi um castigo divino, a retribuição da aliança que deveria se seguir como resultado da idolatria e do pecado de Israel”[2].

Por isso, encerrando a seção de denúncias da transgressão do povo, Isaías afirmou: ‘por causa de seus pecados vocês foram vendidos’ (Is 50:1b).

O castigo do qual Deus está falando é uma uma punição disciplinar. Eles seriam sequestrados e maltratados por uma nação estrangeira como uma consequência de sua persistência no erro. Portanto, “o castigo que estava sobre ele [Jesus] era o exílio de Israel. Não foi uma punição substitutiva, mas um castigo nacional do qual Cristo participou”[3]. E de fato, quando Jesus sofreu nas mãos de gentios que eram tiranos dominadores sobre a nação de Israel(cf. At 4:27–28), chegando a morrer por causa dos sofrimentos provocados por eles, ele sofreu as consequências máximas da maldição exílica[4], mesmo sendo ele inocente — ao contrário dos israelitas impenitentes, que estavam naquela situação de disciplina porque mereciam.

A palavra “castigo” em Isaias 53:5

Isaías 55:3

“Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades: o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.” (Is 53:5)

Em hebraico[5] se lê:

“והוא מחלל מפשענו מדכא מעונתינו מוסר שלומנו עליו ובחברתו נרפא לנו”

מוסר (transl. musar)[6].

A tradução é correção, repreensão. Isto num sentido instrutivo, ético e moral. Das 37 outra vezes que é usada no AT é sempre neste campo semântico[7]. No próprio livro do profeta o termo é usado neste sentido: “SENHOR, no aperto te visitaram; vindo sobre eles a tua correção (trans. ‘musarekha’), derramaram a sua oração secreta” (Is 26:16). A única diferença desta aparição do termo e o caso de Isaías 53:5 é o uso do sufixo pronominal ך, indicando que ‘a correção’ é ‘tua’ (2ª pessoa do singular). Pode parecer estranho ao nosso olhar brasileiro, contudo no hebraico não há os nossos pronomes possessivos (meu, teu, nosso, etc.). Eles são substituídos por sufixos, ou partículas que são colocadas no final do substantivo a ser possuído, como a passagem exemplifica. Cabe aos defensores de outra visão demonstrar o motivo pelo qual castigo aqui deveria ser entendido de maneira que não desta. O ônus da prova é dos opositores.

“Pois você odeia a minha disciplina (musar) e dá as costas às minhas palavras!” (Sl 50:17)

“A viver com disciplina (musar) e sensatez, fazendo o que é justo, direito e correto” (Pv 1:3)

“Para receber a correção (musar)…” (Jr 5:3)

Não inventamos essa distinção entre tipos de castigo/punição. O próprio reformador João Calvino, defensor da Substituição Penal, expõe o que se segue:

“Mas, se eles observassem — e é algo que não deveriam absolutamente ter ignorado — que existem dois tipos de juízo divinoChamamos a um desses, à moda de ensino, ‘juízo de vingança’; ao outro, ‘juízo de castigo’. Pelo juízo de vingança, o Senhor… toma vingança, confunde-os e os dispersa, reduzindo-os a nada. Isso, propriamente falando, equivale a punir e vingar o pecado. E pode ser, propriamente, chamado “penalidade” ou “punição”. No juízo de castigo, ele não pune… Isso não é penalidade ou vingança, mas correção e admoestação. Um é o ato de um juiz; o outro, de um pai. Quando um juiz pune um malfeitor, censura a própria transgressão e aplica a pena ao próprio crime. Quando um pai, com muita severidade, corrige seu filho, não faz isso para se vingar dele ou para tratar suas transgressões com brutalidade; ao contrário, ele o faz para instruí-lo e doravante torná-lo mais cauteloso. Abreviando, sempre que há penalidade, existem maldição e ira de Deus, as quais ele afasta dos crentes. [Já] O castigo constitui uma bênção de Deus e um testemunho de amor. Lemos que todos os santos sempre oraram para que a ira fosse desviada, enquanto recebiam o castigo com a mente serena. ‘Castiga-me, ó SENHOR, mas em justa medida, não em tua ira, para que não me reduzas a nada’ (1 Jeremias 10.24)” (Institutas da Religião Cristã, edição de 1536).

Certamente, Jesus foi alvo de um castigo (‘musar’) da parte de Deus. Afinal, ele foi o israelita por excelência e se compadeceu da miséria do seu povo. Ele se dispôs em sua misericórdia a participar de sua condição. Mas como ensina Calvino, “no juízo de castigo, ele [Deus] não pune… Isso não é penalidade ou vingança, mas correção e admoestação”.

Retomando o assunto

Se o objetivo do Servo Sofredor em seu ministério fosse sofrer uma punição de carácter substitutivo, mediante a qual ele evitaria Israel sofra a Ira da punição eterna recebendo-a em seu lugar, por que o próprio Deus declara que os próprios judeus é quem beberiam o cálice do seu furor?

Isaías Cap. 51.

17 Desperte, desperte! Levante-se, ó Jerusalém, você que bebeu da mão do SENHOR o cálice da ira dele, você que engoliu, até a última gota, da taça que faz os homens cambalearem.

22 Assim diz o seu Soberano, o SENHOR, o seu Deus, que defende o seu povo: “Veja que eu tirei da sua mão o cálice que faz cambalear; dele, do cálice da minha ira, você nunca mais beberá”.

O fato de que Israel sofreu já é suficiente para demonstrar que não houve substituição. Senão, Israel não precisaria receber o castigo. Com efeito, nos salta aos olhos que o autor bíblico enfatiza que Israel esgotou o cálice. Bebeu até a última gota. Finalizou. Se o propósito do ofício do servo sofredor é de natureza penal substitutiva, como argumentam os nossos objetores, algo deu errado na equação:

Isaías Cap. 40.

2 Encorajem Jerusalém e anunciem que ela já cumpriu o trabalho que lhe foi imposto, pagou por sua iniquidade e recebeu da mão do SENHOR em dobro por todos os seus pecados.

Face à toda evidência acima, proponho a seguinte hipótese de harmonização: essa ira/punição/castigo da qual fala o texto não é a punição eterna, como querem os defensores da SP. Dessa punição, Deus nos absolveu gratuitamente. A punição/castigo/ira da qual fala o texto é análoga a aquela raiva que um Pai tem quanto vai disciplinar um filho pro seu bem. Não é uma pena vindicativa! É uma pena didática, instrutiva:

Hebreus Cap. 12.

5 Vocês se esqueceram da palavra de ânimo que ele dirige a vocês como a filhos: “Meu filho, não despreze a disciplina do Senhor nem se magoe com a sua repreensão,

6 pois o Senhor disciplina a quem ama, e castiga todo aquele a quem aceita como filho”.

É por esse motivo que Israel consegue esgotar essa punição. Se fosse a punição eterna (vindicativa) Israel jamais teria como esgotar (afinal, é infinita). Mas como é uma punição didática, Israel consegue não apenas suportar como finaliza-la. Isso explicaria perfeitamente porque o escritor, inspirado pelo Espírito Santo, dentre todas as palavras para descrever o que sofre o Messias por nossa transgressão, escolhe a palavra ‘Musar’, que é vertida (como já dito) nas outras 37 vezes em que é usada, para disciplina.

Como resultado pontuamos que Jesus não substituiu Israel, mas como descendente de Abraão por excelência, o Israelita máximo, participou da disciplina JUNTO com o povo de Israel, com a exceção de que diferente dos outros israelitas ele NÃO precisava ser disciplinado.

Por que Jesus precisava ser disciplinado/sofrer mesmo inocente?

Era conveniente ao Intelecto de Deus, na exata medida em que sua Providência ordenou todas as coisas, fazer Jesus sofrer mediante a disciplina por dois propósitos segundo nossa perspectiva. Em primeiro lugar, com base na epístola aos Hebreus, é possível correlacionar a disciplina/sofrer de Jesus com seu ofício sacerdotal:

“Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que sofreu.
E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem” (Hb 5:8–9).

Certamente, podemos achar uma conexão entre Hebreus e Isaías nesse sentido: em ambos os textos Jesus, o Servo Sofredor, experimentou a disciplina (castigo) em sentido paternal e didático. A epístola avança e expõe que havia algo a ser aprendido mediante tal disciplina (nos referimos as operações da natureza humana de Cristo, pela qual Jesus crescia em sabedoria, cf. Lc 2:52). Segundo o escritor aos Hebreus, pelas coisas que Jesus sofreu, conforme o verso 8, ele aprendeu a obediência. E assim se tornou, conforme o verso 9 do mesmo capítulo, doador da salvação eterna aos que lhe obedecem. Convinha que Jesus aprendesse por ocasião do sofrer. Convinha que ele fosse “tornado completo, mediante o sofrimento” e assim se tornasse nosso excelente Mediador que nos levaria a glória (Hb 2:10).

Deus, o Pai, se agradou em permitir o Filho passar pelos sofrimentos que o capacitariam a ser consagrado nosso perfeitíssimo Sumo Sacerdote diante dEle para nossa salvação. Isso está em harmonia com os estudos mais recentes de exegetas em Hebreus os quais tendem a explicar ‘aperfeiçoar’ como ‘consagrar’ [ao sacerdócio] no background conceitual dessa carta.

Em segundo lugar, Ele sofreu o musar a fim de compartilhar conosco sua vida e vitória através dos seus sofrimentos, para reconciliar-nos com Deus, quando ainda eramos escravos do pecado e estávamos em cativeiro. Não obstante, Jesus é disciplinado pelo Pai em nosso favor, e em união conosco, para que participando de Jesus, tomemos Ele como modelo e sejamos também disciplinados, como nos fala o autor aos Hebreus (Cf. Hb 12), e, então, santificados. Nós estamos sob constante estado de julgamento para disciplina (1 Co 11:32a), pois Ele nos ama (Pv 3:11–12, 13:24) e não quer que sejamos condenados junto com o mundo (Sl 94:12–13; 1 Co 11:32b), mas que vivamos (Pv 19:18).

Sendo assim, devemos participar da disciplina de Cristo, unidos a Ele (Mt 16:24–25; Fp 2:1–2), se quisermos viver por meio da sua vitória (Rm 16:20).

“Ora, se morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos. […] Porque morrendo, ele morreu para o pecado uma vez por todas; mas vivendo, vive para Deus. Da mesma forma, considerem-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus.”

Romanos 6:8–11

A SP não é necessária para interpretar Isaías. Basta-nos um exame acurado do contexto do bloco no qual ele está inserido. A Cruz de Jesus foi o ápice da sua obediência, e a obediência de Cristo foi aprendida através do sofrer da disciplina. Convém que com ele tomemos a nossa cruz, sejamos disciplinados e assim aprendamos. A Cruz de Jesus é um convite.

Referências Bibliográficas

[1] MONTENEGRO, Gyordano. Punido pelo Pai? / editado por Jadson Targino. 1 ed. João Pessoa: Publicações Digitais Independentes. 2020, p. 20.

[2] WRIGHT, N.T. The Fifth Gospel: Why Isaiah Matters?. Disponível em: https://www.ntwrightonline.org/the-fifth-gospel-why-isaiah-matters/. Acesso em 02 de Julho de 2020.

[3] MONTENEGRO, Gyordano. Punido pelo Pai? / editado por Jadson Targino. 1 ed. João Pessoa: Publicações Digitais Independentes. 2020, p. 20.

[4] Ibid, p. 21.

[5] Confira Isaías no original aqui.

[6] Confira: http://www.hebraico.pro.br/dicionario/resposta.asp?qs_idioma=HEBRAICO&qs_palavra=rswm.

[7] Confira: https://biblehub.com/hebrew/musar_4148.htm.

Texto: Jadson Targino e Davi Miranda

Revisão: Lucas Moreira Barbosa

03/07/2020.

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Jadson Targino

Seminarista pelo CETAD/PB (seminário da Assembleia de Deus na Paraíba), tradutor e graduando em Ciências da Religião pela UFPB.