As 97 Teses esquecidas de Martinho Lutero contra a Teologia Escolástica

Jadson Targino
9 min readFeb 26, 2020

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No auge do seu fervor jovem (e antes das 95 teses fixadas no castelo em Wittenberg fazerem sucesso!) o monge agostiniano alemão Martinho Lutero produziu um controverso documento chamado “Disputa contra a Teologia Escolástica” que consistia de uma coletânea de 97 proposições contrárias a filosofia e teologia desenvolvida/defendida pela maioria dos escolásticos no seu período.

Como alguém influenciado pela Escolástica que sou — em detrimento de concordância com várias das suas teses — não posso subscrever boa parte das críticas do arrojado reformador nesse documento. Entretanto, apresento aqui a minha tradução das teses (vocês podem ler em inglês aqui: https://williamroach.org/2017/08/20/martin-luthers-1517-disputation-against-scholastic-theology/ ), a qual fiz com o objetivo de facilitar a futura pesquisa de brasileiros nessa área, ou seja, melhorar a acessibilidade a esse conteúdo. A maioria dos estudantes da teologia da reforma talvez nem saiba da existência desse documento. Reproduzo agora a minha tradução:

Disputa contra a Teologia Escolástica — 97 teses de Martinho Lutero:

  1. Dizer que Agostinho exagerou no debate contra os hereges é dizer que Agostinho mentiu a maior parte do tempo. Contrário ao conhecimento geral.
  2. Isso é o mesmo que permitir que Pelagianos e todos os hereges triunfem, ou seja, conceder vitória a eles.
  3. Em outras palavras, isto é brincar com a autoridade de todos os doutores de teologia.
  4. É verdade, portanto, que um homem sendo uma árvore má, só pode desejar e fazer o mal [Mt 7:17–18].
  5. É falso postular que a inclinação do homem é livre para escolher entre dois opostos. Ou seja, a inclinação do homem não é livre, mas cativa. Digo isto em oposição a opinião comum.
  6. É falso postular que a vontade pode naturalmente se conformar ao preceito correto. Contra Duns Scotus e Gabriel Biel.
  7. Como matéria deste fato, sem a Graça de Deus a vontade produzirá um ato que é perverso e mal.
  8. O que não significa, entretanto, que a vontade é por natureza — isto é, essencialmente — má, como os maniqueus defendem.
  9. Entretanto, é inata e inevitavelmente corrupta.
  10. É preciso admitir que a vontade não é livre para obrar pelo que quer que seja considerado bom. Contra Scotus e Gabriel.
  11. Não está capacitada para desejar ou não desejar o que quer que seja prescrito.
  12. Nem se contradiz Agostinho quando diz que nada está no poder da vontade como quanto na própria vontade.
  13. É absurdo concluir que porque o homem errante consegue amar uma criatura acima de todas as coisas, ele também pode amar a Deus. Em oposição a Scotus e Gabriel.
  14. Não é surpreendente que a vontade possa se conformar ao errado mas não possa se conformar ao preceito correto.
  15. De fato, é peculiar a ela que ela só possa se conformar ao errado mas não ao preceito correto.
  16. Portanto, devemos admitir: conquanto o homem errante esteja apto para amar as criaturas, é impossível a ele amar a Deus.
  17. O homem é por natureza incapaz de querer que Deus seja Deus. De fato, ele mesmo quer ser Deus, e não quer que Deus seja Deus.
  18. Amar a Deus acima de todas as coisas por natureza é um termo ficcional, uma quimera. Isso é contrário ao ensino comum.
  19. Também não podemos aplicar aqui o ensino de Scotus sobre um fervoroso cidadão patriota que ama mais o seu país do que a ele.
  20. Um ato de amizade é feito, não de acordo com a natureza, mas de acordo com a graça preveniente. Isso está em oposição a Gabriel.
  21. Nenhum ato é feito de acordo com a natureza a não ser um ato de concupiscência contra Deus.
  22. Todo ato de concupiscência contra Deus é mau e uma fornicação do espírito.
  23. Também não é verdade que um ato de concupiscência possa ser consumado pela virtude da esperança. Isso é contrário a Gabriel.
  24. Pois a esperança não é contrária à caridade, que busca e deseja apenas o que é de Deus.
  25. A esperança não cresce com os méritos, mas com o sofrimento que destrói os méritos. Isso se opõe a visão de muitos.
  26. Um ato de amizade não é o ato mais perfeito para realizar o que ele objetiva. Muito menos é o ato mais perfeito para obter a graça de Deus, ou se voltar para ele e se aproximar dele.
  27. Entretanto, é um ato já aperfeiçoado de conversão, que segue a graça no tempo e na natureza.
  28. Se o que é explicado das passagens das Escrituras que afirmam: “Volte para mim,. . . e eu voltarei para você ”[Zc 1,3],“ Aproxime-se de Deus e ele se aproximará de você ”[Tg 4,8],“ Busque e encontrará ”[Matt 7,7],“ Você me procurará e me encontrará ”[Jer 29,13], e assim por diante, é que um trata da volta por natureza, o outro da volta por graça, isso não é diferente de afirmar o que os pelagianos disseram.
  29. A melhor e infalível preparação para a graça e a única disposição para com ela é a eterna eleição e predestinação de Deus.
  30. Por parte do homem, porém, nada precede a graça, exceto a indisposição e até a rebelião contra a graça.
  31. Diz-se com as demonstrações mais ociosas que os predestinados podem ser condenados individualmente, mas não coletivamente. Isto está em oposição aos escolásticos.
  32. Além disso, não se consegue nada com o seguinte dizer: A predestinação é necessária em virtude da consequência da vontade de Deus, mas não do que realmente se seguiu, a saber, que Deus teve que eleger uma determinada pessoa.
  33. É falso que alguém realizar tudo o que se pode fazer remove os obstáculos à graça. Isso é contrário a várias autoridades.
  34. Em resumo, o homem, por natureza, não tem boa vontade nem preceito correto.
  35. Não é verdade que uma ignorância invencível excuse alguém completamente (apesar de todos os escolásticos dizerem isso).
  36. Pois a ignorância de Deus e de si mesmos e as boas obras são sempre impossíveis de alcançar para a natureza.
  37. Além disso, a natureza se envaidece interior e necessariamente e se orgulha de todo obrar aparentemente bom e exterior.
  38. Não há virtude moral sem orgulho nem tristeza, ou seja, sem pecado.
  39. Não somos donos de nossas ações, do começo ao fim, mas servos. Isto está em oposição aos filósofos.
  40. Não nos tornamos justos por fazer obras justas, mas, tendo sido feitos justos, fazemos obras justas. Isso em oposição aos filósofos.
  41. Toda a ética de Aristóteles é a pior inimiga da graça. Contra os escolásticos.
  42. É um erro sustentar que a afirmação de Aristóteles sobre a felicidade não contradiz a doutrina católica. Isso é contrário a doutrina [católica] sobre a moral.
  43. É um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles. Contrário à opinião geral.
  44. O fato é que ninguém pode se tornar um teólogo a menos que ele rejeite Aristóteles.
  45. Afirmar que um teólogo que não é lógico é um herege monstruoso — essa sim, é uma afirmação monstruosa e herética. Isso é contrário à opinião comum.
  46. Em vão se forma uma lógica de fé, uma substituição provocada sem consideração pelo limite e pela medida. Isso está em oposição aos novos dialéticos.
  47. Nenhuma forma silogística é válida quando aplicada a termos divinos. Isso está em oposição ao cardeal [Pedro de Ailly].
  48. Não obstante, não é por essa razão que a verdade da doutrina da Trindade contradiz formas silogísticas. Isso realmente se opõe aos novos dialéticos e ao cardeal.
  49. Se uma forma silogística de raciocínio se sustenta em assuntos divinos, então uma doutrina da trindade é demonstrável e não o objeto da fé.
  50. Resumidamente, Aristóteles inteiro é para a teologia como as trevas são para a luz. Isto está em oposição aos escolásticos.
  51. É muito duvidoso que os latinos tenham compreendido o significado correto de Aristóteles.
  52. Teria sido melhor para a igreja se Porfírio com seus universais não tivesse nascido para o uso de teólogos.
  53. Até as definições mais úteis de Aristóteles parecem implorar pela petição.
  54. Para que um ato seja meritório, ou a presença da graça é suficiente ou sua presença não significa nada. Isso está em oposição a Gabriel.
  55. A graça de Deus nunca está presente de maneira que seja inativa, mas é espiritualmente viva, ativa e operativa; nem pode acontecer que, através do potência absoluta de Deus, um ato de amizade possa estar presente sem a presença da graça de Deus. Isso é contrário a Gabriel.
  56. Não é verdade que Deus possa aceitar o homem sem a sua graça justificadora. Isso está em oposição a Ockham.
  57. É perigoso dizer que a lei ordena que um ato de obediência ao mandamento seja feito na graça de Deus. Isso em oposição ao cardeal e a Gabriel.
  58. Disso se seguiria que “ter a graça de Deus” é na verdade uma nova exigência que vai além da lei.
  59. Também se seguiria que o cumprimento da lei pode ocorrer sem a graça de Deus.
  60. Da mesma forma, segue-se que a graça de Deus seria mais odiosa do que a própria lei.
  61. Não se segue que a lei seja realizada e cumprida na graça de Deus. Isso contraria Gabriel.
  62. E que, portanto, quem está fora da graça de Deus peca incessantemente, mesmo quando não mata, comete adultério ou fica irado.
  63. Mas segue-se que ele peca porque não cumpre a lei espiritualmente.
  64. Espiritualmente, essa pessoa não mata, não pratica o mal, não se enfurece quando não fica irada nem deseja ficar.
  65. Fora da graça de Deus, é realmente impossível não ficar com raiva ou luxúria, de modo que nem mesmo na graça é possível cumprir a lei perfeitamente.
  66. É a justiça do hipócrita, na verdade e exteriormente, não matar, fazer o mal, etc.
  67. É pela graça de Deus que alguém não cobiça nem se enfurece.
  68. Portanto, é impossível cumprir a lei de qualquer maneira sem a graça de Deus.
  69. De fato, é mais preciso dizer que a lei é destruída pela natureza sem a graça de Deus.
  70. Uma boa lei necessariamente será ruim para a vontade natural.
  71. Lei e vontade são dois inimigos implacáveis ​​sem a graça de Deus.
  72. O que a lei quer, a vontade nunca quer, a menos que pretenda desejá-la por medo ou amor.
  73. A lei, como capataz da vontade, não será superada, exceto pelo “filho que se nos deu” [Isa. 9,6].
  74. A lei faz abundar o pecado, porque irrita e repele a vontade [Rm 7,13].
  75. A graça de Deus, no entanto, faz abundar a justiça em Jesus Cristo, porque faz com que alguém se agrade da lei.
  76. Todo ato da lei sem a graça de Deus parece bom externamente, mas interiormente é pecado. Isto está em oposição aos escolásticos.
  77. A vontade é sempre avessa e as mãos contrárias a lei do Senhor sem a graça de Deus.
  78. A vontade que é inclinada para a lei sem a graça de Deus é inclinada somente em razão de sua própria vantagem.
  79. Condenados são todos aqueles que fazem as obras da lei.
  80. Bem-aventurados todos aqueles que fazem as obras da graça de Deus.
  81. O capítulo “Falsas sobre penitência”, dist. 5, confirma o fato de que obras fora do reino da graça não são boas, se isso não for entendido falsamente.
  82. Não são apenas os cerimoniais religiosos as boas leis e os preceitos em que não se vive (em oposição a muitos professores).
  83. Mas mesmo o próprio Decálogo e tudo o que pode ser ensinado e prescrito interior e exteriormente também não é lei boa [para nós].
  84. A boa lei e aquilo em que se é vivificado é o amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo.
  85. A vontade de alguém preferiria, se fosse possível, que não houvesse lei e que fosse totalmente livre.
  86. Qualquer pessoa odeia que a lei lhe seja imposta; se, no entanto, a vontade deseja a imposição da lei, ela o faz por amor a si próprio.
  87. Como a lei é boa, a vontade, que é hostil, não pode ser boa.
  88. E a partir disso, fica claro que a vontade natural de todos é iníqua e ruim.
  89. A graça como mediadora é necessária para reconciliar a lei com a vontade.
  90. A graça de Deus é dada com o propósito de direcionar a vontade, para que ela não erre mesmo em amar a Deus. Em oposição a Gabriel.
  91. [A graça] não é dada para que boas ações possam ser induzidas com mais frequência e facilidade, mas porque sem ela nenhum ato de amor é realizado. Em oposição a Gabriel.
  92. Não se pode negar que o amor é supérfluo se, por natureza, o homem é capaz de fazer um ato de amizade. Em oposição a Gabriel.
  93. Há um tipo de mal sutil no argumento de que um ato é ao mesmo tempo o fruto e o uso do fruto. Em oposição a Ockham, o cardeal e Gabriel.
  94. Isso vale também para dizer que o amor de Deus pode continuar ao lado de um intenso amor à criatura.
  95. Amar a Deus é ao mesmo tempo odiar a si mesmo e não conhecer nada além de Deus.
  96. Devemos fazer com que nossa vontade se conforme em todos os aspectos à vontade de Deus (em oposição ao cardeal).
  97. Para que não apenas desejemos o que Deus deseja, mas também desejamos o que Deus quiser.

Fizemos estas declarações querendo acreditar que o que dissemos não é nada que está em desacordo com a Igreja Católica e seus professores.

Traduzido por Jadson Targino da Silva Júnior (26/02/2020).

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Jadson Targino

Seminarista pelo CETAD/PB (seminário da Assembleia de Deus na Paraíba), tradutor e graduando em Ciências da Religião pela UFPB.