As 97 Teses esquecidas de Martinho Lutero contra a Teologia Escolástica
No auge do seu fervor jovem (e antes das 95 teses fixadas no castelo em Wittenberg fazerem sucesso!) o monge agostiniano alemão Martinho Lutero produziu um controverso documento chamado “Disputa contra a Teologia Escolástica” que consistia de uma coletânea de 97 proposições contrárias a filosofia e teologia desenvolvida/defendida pela maioria dos escolásticos no seu período.
Como alguém influenciado pela Escolástica que sou — em detrimento de concordância com várias das suas teses — não posso subscrever boa parte das críticas do arrojado reformador nesse documento. Entretanto, apresento aqui a minha tradução das teses (vocês podem ler em inglês aqui: https://williamroach.org/2017/08/20/martin-luthers-1517-disputation-against-scholastic-theology/ ), a qual fiz com o objetivo de facilitar a futura pesquisa de brasileiros nessa área, ou seja, melhorar a acessibilidade a esse conteúdo. A maioria dos estudantes da teologia da reforma talvez nem saiba da existência desse documento. Reproduzo agora a minha tradução:
Disputa contra a Teologia Escolástica — 97 teses de Martinho Lutero:
- Dizer que Agostinho exagerou no debate contra os hereges é dizer que Agostinho mentiu a maior parte do tempo. Contrário ao conhecimento geral.
- Isso é o mesmo que permitir que Pelagianos e todos os hereges triunfem, ou seja, conceder vitória a eles.
- Em outras palavras, isto é brincar com a autoridade de todos os doutores de teologia.
- É verdade, portanto, que um homem sendo uma árvore má, só pode desejar e fazer o mal [Mt 7:17–18].
- É falso postular que a inclinação do homem é livre para escolher entre dois opostos. Ou seja, a inclinação do homem não é livre, mas cativa. Digo isto em oposição a opinião comum.
- É falso postular que a vontade pode naturalmente se conformar ao preceito correto. Contra Duns Scotus e Gabriel Biel.
- Como matéria deste fato, sem a Graça de Deus a vontade produzirá um ato que é perverso e mal.
- O que não significa, entretanto, que a vontade é por natureza — isto é, essencialmente — má, como os maniqueus defendem.
- Entretanto, é inata e inevitavelmente corrupta.
- É preciso admitir que a vontade não é livre para obrar pelo que quer que seja considerado bom. Contra Scotus e Gabriel.
- Não está capacitada para desejar ou não desejar o que quer que seja prescrito.
- Nem se contradiz Agostinho quando diz que nada está no poder da vontade como quanto na própria vontade.
- É absurdo concluir que porque o homem errante consegue amar uma criatura acima de todas as coisas, ele também pode amar a Deus. Em oposição a Scotus e Gabriel.
- Não é surpreendente que a vontade possa se conformar ao errado mas não possa se conformar ao preceito correto.
- De fato, é peculiar a ela que ela só possa se conformar ao errado mas não ao preceito correto.
- Portanto, devemos admitir: conquanto o homem errante esteja apto para amar as criaturas, é impossível a ele amar a Deus.
- O homem é por natureza incapaz de querer que Deus seja Deus. De fato, ele mesmo quer ser Deus, e não quer que Deus seja Deus.
- Amar a Deus acima de todas as coisas por natureza é um termo ficcional, uma quimera. Isso é contrário ao ensino comum.
- Também não podemos aplicar aqui o ensino de Scotus sobre um fervoroso cidadão patriota que ama mais o seu país do que a ele.
- Um ato de amizade é feito, não de acordo com a natureza, mas de acordo com a graça preveniente. Isso está em oposição a Gabriel.
- Nenhum ato é feito de acordo com a natureza a não ser um ato de concupiscência contra Deus.
- Todo ato de concupiscência contra Deus é mau e uma fornicação do espírito.
- Também não é verdade que um ato de concupiscência possa ser consumado pela virtude da esperança. Isso é contrário a Gabriel.
- Pois a esperança não é contrária à caridade, que busca e deseja apenas o que é de Deus.
- A esperança não cresce com os méritos, mas com o sofrimento que destrói os méritos. Isso se opõe a visão de muitos.
- Um ato de amizade não é o ato mais perfeito para realizar o que ele objetiva. Muito menos é o ato mais perfeito para obter a graça de Deus, ou se voltar para ele e se aproximar dele.
- Entretanto, é um ato já aperfeiçoado de conversão, que segue a graça no tempo e na natureza.
- Se o que é explicado das passagens das Escrituras que afirmam: “Volte para mim,. . . e eu voltarei para você ”[Zc 1,3],“ Aproxime-se de Deus e ele se aproximará de você ”[Tg 4,8],“ Busque e encontrará ”[Matt 7,7],“ Você me procurará e me encontrará ”[Jer 29,13], e assim por diante, é que um trata da volta por natureza, o outro da volta por graça, isso não é diferente de afirmar o que os pelagianos disseram.
- A melhor e infalível preparação para a graça e a única disposição para com ela é a eterna eleição e predestinação de Deus.
- Por parte do homem, porém, nada precede a graça, exceto a indisposição e até a rebelião contra a graça.
- Diz-se com as demonstrações mais ociosas que os predestinados podem ser condenados individualmente, mas não coletivamente. Isto está em oposição aos escolásticos.
- Além disso, não se consegue nada com o seguinte dizer: A predestinação é necessária em virtude da consequência da vontade de Deus, mas não do que realmente se seguiu, a saber, que Deus teve que eleger uma determinada pessoa.
- É falso que alguém realizar tudo o que se pode fazer remove os obstáculos à graça. Isso é contrário a várias autoridades.
- Em resumo, o homem, por natureza, não tem boa vontade nem preceito correto.
- Não é verdade que uma ignorância invencível excuse alguém completamente (apesar de todos os escolásticos dizerem isso).
- Pois a ignorância de Deus e de si mesmos e as boas obras são sempre impossíveis de alcançar para a natureza.
- Além disso, a natureza se envaidece interior e necessariamente e se orgulha de todo obrar aparentemente bom e exterior.
- Não há virtude moral sem orgulho nem tristeza, ou seja, sem pecado.
- Não somos donos de nossas ações, do começo ao fim, mas servos. Isto está em oposição aos filósofos.
- Não nos tornamos justos por fazer obras justas, mas, tendo sido feitos justos, fazemos obras justas. Isso em oposição aos filósofos.
- Toda a ética de Aristóteles é a pior inimiga da graça. Contra os escolásticos.
- É um erro sustentar que a afirmação de Aristóteles sobre a felicidade não contradiz a doutrina católica. Isso é contrário a doutrina [católica] sobre a moral.
- É um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles. Contrário à opinião geral.
- O fato é que ninguém pode se tornar um teólogo a menos que ele rejeite Aristóteles.
- Afirmar que um teólogo que não é lógico é um herege monstruoso — essa sim, é uma afirmação monstruosa e herética. Isso é contrário à opinião comum.
- Em vão se forma uma lógica de fé, uma substituição provocada sem consideração pelo limite e pela medida. Isso está em oposição aos novos dialéticos.
- Nenhuma forma silogística é válida quando aplicada a termos divinos. Isso está em oposição ao cardeal [Pedro de Ailly].
- Não obstante, não é por essa razão que a verdade da doutrina da Trindade contradiz formas silogísticas. Isso realmente se opõe aos novos dialéticos e ao cardeal.
- Se uma forma silogística de raciocínio se sustenta em assuntos divinos, então uma doutrina da trindade é demonstrável e não o objeto da fé.
- Resumidamente, Aristóteles inteiro é para a teologia como as trevas são para a luz. Isto está em oposição aos escolásticos.
- É muito duvidoso que os latinos tenham compreendido o significado correto de Aristóteles.
- Teria sido melhor para a igreja se Porfírio com seus universais não tivesse nascido para o uso de teólogos.
- Até as definições mais úteis de Aristóteles parecem implorar pela petição.
- Para que um ato seja meritório, ou a presença da graça é suficiente ou sua presença não significa nada. Isso está em oposição a Gabriel.
- A graça de Deus nunca está presente de maneira que seja inativa, mas é espiritualmente viva, ativa e operativa; nem pode acontecer que, através do potência absoluta de Deus, um ato de amizade possa estar presente sem a presença da graça de Deus. Isso é contrário a Gabriel.
- Não é verdade que Deus possa aceitar o homem sem a sua graça justificadora. Isso está em oposição a Ockham.
- É perigoso dizer que a lei ordena que um ato de obediência ao mandamento seja feito na graça de Deus. Isso em oposição ao cardeal e a Gabriel.
- Disso se seguiria que “ter a graça de Deus” é na verdade uma nova exigência que vai além da lei.
- Também se seguiria que o cumprimento da lei pode ocorrer sem a graça de Deus.
- Da mesma forma, segue-se que a graça de Deus seria mais odiosa do que a própria lei.
- Não se segue que a lei seja realizada e cumprida na graça de Deus. Isso contraria Gabriel.
- E que, portanto, quem está fora da graça de Deus peca incessantemente, mesmo quando não mata, comete adultério ou fica irado.
- Mas segue-se que ele peca porque não cumpre a lei espiritualmente.
- Espiritualmente, essa pessoa não mata, não pratica o mal, não se enfurece quando não fica irada nem deseja ficar.
- Fora da graça de Deus, é realmente impossível não ficar com raiva ou luxúria, de modo que nem mesmo na graça é possível cumprir a lei perfeitamente.
- É a justiça do hipócrita, na verdade e exteriormente, não matar, fazer o mal, etc.
- É pela graça de Deus que alguém não cobiça nem se enfurece.
- Portanto, é impossível cumprir a lei de qualquer maneira sem a graça de Deus.
- De fato, é mais preciso dizer que a lei é destruída pela natureza sem a graça de Deus.
- Uma boa lei necessariamente será ruim para a vontade natural.
- Lei e vontade são dois inimigos implacáveis sem a graça de Deus.
- O que a lei quer, a vontade nunca quer, a menos que pretenda desejá-la por medo ou amor.
- A lei, como capataz da vontade, não será superada, exceto pelo “filho que se nos deu” [Isa. 9,6].
- A lei faz abundar o pecado, porque irrita e repele a vontade [Rm 7,13].
- A graça de Deus, no entanto, faz abundar a justiça em Jesus Cristo, porque faz com que alguém se agrade da lei.
- Todo ato da lei sem a graça de Deus parece bom externamente, mas interiormente é pecado. Isto está em oposição aos escolásticos.
- A vontade é sempre avessa e as mãos contrárias a lei do Senhor sem a graça de Deus.
- A vontade que é inclinada para a lei sem a graça de Deus é inclinada somente em razão de sua própria vantagem.
- Condenados são todos aqueles que fazem as obras da lei.
- Bem-aventurados todos aqueles que fazem as obras da graça de Deus.
- O capítulo “Falsas sobre penitência”, dist. 5, confirma o fato de que obras fora do reino da graça não são boas, se isso não for entendido falsamente.
- Não são apenas os cerimoniais religiosos as boas leis e os preceitos em que não se vive (em oposição a muitos professores).
- Mas mesmo o próprio Decálogo e tudo o que pode ser ensinado e prescrito interior e exteriormente também não é lei boa [para nós].
- A boa lei e aquilo em que se é vivificado é o amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo.
- A vontade de alguém preferiria, se fosse possível, que não houvesse lei e que fosse totalmente livre.
- Qualquer pessoa odeia que a lei lhe seja imposta; se, no entanto, a vontade deseja a imposição da lei, ela o faz por amor a si próprio.
- Como a lei é boa, a vontade, que é hostil, não pode ser boa.
- E a partir disso, fica claro que a vontade natural de todos é iníqua e ruim.
- A graça como mediadora é necessária para reconciliar a lei com a vontade.
- A graça de Deus é dada com o propósito de direcionar a vontade, para que ela não erre mesmo em amar a Deus. Em oposição a Gabriel.
- [A graça] não é dada para que boas ações possam ser induzidas com mais frequência e facilidade, mas porque sem ela nenhum ato de amor é realizado. Em oposição a Gabriel.
- Não se pode negar que o amor é supérfluo se, por natureza, o homem é capaz de fazer um ato de amizade. Em oposição a Gabriel.
- Há um tipo de mal sutil no argumento de que um ato é ao mesmo tempo o fruto e o uso do fruto. Em oposição a Ockham, o cardeal e Gabriel.
- Isso vale também para dizer que o amor de Deus pode continuar ao lado de um intenso amor à criatura.
- Amar a Deus é ao mesmo tempo odiar a si mesmo e não conhecer nada além de Deus.
- Devemos fazer com que nossa vontade se conforme em todos os aspectos à vontade de Deus (em oposição ao cardeal).
- Para que não apenas desejemos o que Deus deseja, mas também desejamos o que Deus quiser.
Fizemos estas declarações querendo acreditar que o que dissemos não é nada que está em desacordo com a Igreja Católica e seus professores.
Traduzido por Jadson Targino da Silva Júnior (26/02/2020).